- Avô...
- Sim, Alfredo...
- Quero que me arranjes material para pescar no mar e no rio.
- Para quê? Quando vamos de férias ponho-te à disposição o material que precisas.
- Pois, avô. Mas agora é diferente. Quero fazer parte da equipa do clube. Treinar com eles, ir a concursos, federar-me e ir aos campeonatos.
- O quê?! Estás maluco?...
- Ora essa, avô. Porquê?
- Porquê?!... Por amor de Deus, Alfredo, então tu queres iniciar-te num desporto decadente?...
- Decadente, avô?
- Decadente e muito pior que isso. Socialmente mal visto, alvo de troças, de chacotas...
- Ora avô, isso são exageros.
- São exageros?!... São exageros?! Pois bem, assim que os vizinhos te virem a carregar o material, quando fores a partir para a pesca, nunca mais te deixam em paz. Quando estiver mau tempo, dizem-te logo, com ar de gozo: “Alfredo, hoje é que está bom para a pesca”. Noutra ocasião qualquer atiram-te: “Ói... pescadores, caçadores e outros mentirosos...”. Dir-te-ão também, no meio de risota: “Alfredo, dedica-te à pesca!”. Pior ainda, há-de haver ocasiões em que te mandarão “dar banho à minhoca”. Esquece, pá. Dedica-te a outra coisa.
- Mas, oh avô, eu gosto de estar à beira mar e à beira rio.
- Então vai fazer surf, canoagem, natação em águas livres... Seja o que for. Menos a pesca.
- Oh avô, mas eu gosto da pesca... Quero lá saber dessas cenas.
- Olha, pá: Tu estás a altura dos namoricos, de impressionares as garinas, certo? Pois bem, se fores para o surf ou outra actividade da moda tens as miúdas todas à babugem. Na pesca, ao contrário, se elas te virem de cana na mão fazem logo um ar enojado e chamam-te maluco ou atrasado, pá. Esquece.
- Oh avô, eu para as miúdas tenho outros argumentos.
- Mas tu não vês que dedicares-te à pesca, hoje, no tempo dos computadores de milhares de megabaites, é como se optasses por ignorar essa realidade e apaixonares-te por trabalhares e divertir-te com uma velha máquina de escrever...
- Hiiii, cota, que cena. Corta, meu. A pesca, hoje, tem material e processos supermodernos.
- Até tem. Mas, socialmente, é passado. É coisa ultrapassada, obsoleta. É coisa para velhos. Não é para gente nova.
- Avô, contra ti falas, pois começaste a pescar cedo...
-Pois, mas na altura a pesca era como é agora o surf, que ainda não se sonhava que existia. Eu, quando vinha das arribas e passava pela praia, as miúdas abafavam-me, para ver o que eu tinha pescado e admirarem os novos materiais que tinham mandado as canas da índia e os carretos de madeira de macacaúba para os esconsos e os sótãos. A pesca estava no centro da modernidade e até os poderes públicos a apoiavam. As câmaras punham muretes nalguns pesqueiros, como ainda existem na Praia das Maçãs e na Ericeira, e faziam escadas para o acesso a outros.
- E ainda apoiam.
- Apoiam, apoiam. Vai falar com um autarca qualquer do litoral, que ele diz-te logo que dos pescadores quer é lonjura, pois deixam os pesqueiros cheios de detritos e de lixarada, pá. E com toda a razão!
- Espera aí, ó velho... Há câmaras que até fizeram pistas de pesca e fazem anualmente a sua manutenção. É ou não é?
- Pois, Alfredo, está bem. Mas isso é nas águas interiores, onde não há surf ou outros desportos que calhem bem nesses troços de rio. Se houvesse, está bem ó pesca... Mas, toma nota: Quem frequenta, hoje, as pistas de pesca é quase só a velhada e uns tipos de meia-idade. Malta nova, jovens, nikles, salvo uma ou outra excepção. E os concursos que aí se fazem já não são o que eram aqui há 20, 15 ou 10 anos atrás.
- Está bem avô, mas eu quero dedicar-me à pesca, a sério. Muitas vezes sonho com aquele robalo de quilo e meio que pesquei contigo, na Ericeira. E com a carpa de dois quilos e tal, no Maranhão. E com os barbos do Sorraia.
- Bom, já que não ouves a voz da razão, seja feita a tua vontade. Vou prepara-te o material todo, para o mar e para o rio. Mas, depois, não digas que não te avisei.
Após esta conversa com o meu neto, fiquei cerca de 10 minutos sentado, a digerir o acontecimento. Depois, levantei-me e encaminhei-me para a cave. Fui buscar uma garrafa de conhaque que tinha reservada para um ocasião especial. Bebi uns golos e, depois, fui buscar um charuto que o meu amigo Emiliano me oferecera após umas férias em Cuba. Por entre as baforadas, dei por mim a exclamar, em voz alta, com um sorriso na cara e os olhos húmidos: “Sacana, tinhas que sair ao avô...”.
