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Autor Tópico: O rio da revolta  (Lida 881 vezes)

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Offline Braga

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O rio da revolta
« em: 20:15 Sábado, 25 de Janeiro de 2014 »
Boas

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O rio da revolta

O rio era o caminho…
Os nossos corações tinham encontrado o seu percurso
Apenas sentíamos que tínhamos chegado
Não sabíamos se algum dia daríamos com o caminho do regresso
Ele seria o nosso guia, perdidos e sós, cegos estavamos


Ao longe, naquele declive acentuado de forragem verde ondulando ao vento podíamos agora vê-lo com nitidez. Naquele mar verde, deslizava o rio do nosso destino. Por entre sobreiros descascados de cor vermelho barro vivo, serpenteava em curvas suaves, apertado pela montanha que se erguia lá no fim do horizonte, cujo rasto se perdia numa mata densa de carvalhos e azinheiras , onde o tempo e os homens não deixaram marcas da sua passagem.

Num ultimo aceno, Zé Patilhas , despedia-se do feitor Jeremias empoleirado aos solavancos num velho tractor erguendo o seu pescoço curto por cima do volante para verificar se o caminho de volta era o mesmo da chegada. Por aquelas bandas a herdade estava entregue ao abandono, pelo que os silvados tinham feito desaparecer uma parte do antigo caminho do moleiro que todos os dias o trilhava trazendo a farinha de trigo e centeio do moinho de agua habilmente construído sobre o percurso de agua que corria apertado no seu seio.

-Não fazia ideia que o rio fosse assim…;Vargas, do alto do seu tronco atlético e cabelo ralo, cuja tonalidade era a da seara de um fim de um dia de verão , exímio pescador, observava o lado mais negro do leito, enquanto mastigava uma azeda pelo caule mais fino.<<Penso que naquele troço mais fundo encontraremos os barbos gigantes de que houvimos falar>>….Que acham,??
Humm.., não sei .., dizia Vitor, coçando a cabeça e sacudindo a palha e a poeira do cabelo, enquanto ajeitava a bandoleira das canas ao hombro esquerdo num gesto lento, como habitualmente o fazia quando pensava. - Mas daria a minha ultima garrafa de gin ao mais sortudo de todos nós se o rio fosse tão generoso assim, hehe!! Vamos!!Depressa,!! Anoitece e ainda temos de remendar com a lona plástica todos os buracos estilhaçados do vidral da casa do monte, abandonada havia anos depois da ocupação.

Na penumbra que se fazia sentir , o rio adormecia ao som de um bando de perdizes que pigarreavam no fundo do vale.Tudo era melancolia e no silencio fez-se a noite. O mundo da luz fechava-se , deixando uma pequena candeia alumiando aquele lugar esquecido de Deus, onde um pequeno grupo de homens se recolhia perto da fogueira. Os seus rostos ,reflectiam uma vida escolhida um dia pela separação de uma unidade juramentada pelos seus corações embriagados de amizade de marés,areias e dunas ao vento quando ainda o tempo não dava lugar á memória..Um dia decidiram partir.Tinha chegado o momento das suas vidas escolherem o melhor farol e abrigo dos seus diferentes destinos.

O rio e a pesca foi a justificação, o motivo .Talvez até a resposta para muitas das suas duvidas e questões deixadas por esquecimento num banco de um jardim de uma grande cidade, num canto obscuro de uma sala de cinema, numa pesca solitária de um molhe ressequido pelo sol e pelo óleo do peixe e das redes secando ao sol . Num quarto com vista para um quintal emparedado de um vizinho de nome ignorado entre os altos arranha céus….Numa noite perdida pelo cansaço de um turno fabril em horas mortas preenchidas pelo vazio do espaço.

Tinham-se passado anos e agora o rio contaria as suas historias, na sua ingenuidade leitosa de verde azeitona , cada seixo, vereda e musgo da sua margem contaria a vida de cada um e os peixes luzidios que fulgiam na corrente que deslizava tranquila sob a cascata do velho moinho seriam testemunhas das suas vidas separadas.

Inquietos pelo aproximar e som dos passos daqueles homens de canas a tiracolo, fugiram para o fundo leitoso . Não porque tivessem receio ou medo , mas porque o rio tinha mudado de cor…

Empalidecia a cada passo mais chegado dos homens que riam e cantavam musicas de tempos passados juntos, pescando, escamando o peixe, bebendo e sorrindo pelas boas vidas que tiveram até então.

Mas algo de estranho tinha acontecido.Algo tinha mudado naqueles homens. Este não era um rio igual aos outros, por isso o tinham esquecido . Sentia que algo de grave se tinha passado e seria a única testemunha dos seus actos passados e futuros…

Era um sulco rasgado no coração de cada um deles, e mais fundo feria de cada vez que cada um de nós se aproximava.


A pesca

A madrugada chegou e das suas aguas uma névoa de farrapos densos em espiral volteavam no ar acordando o céu e refrescando o tépido ar dormente que lentamente se afastava para os cumes daquele vale sombrio sem luz .Separados por um denso arvoredo , ao longe avistei uma zona frondosa cujas aguas retidas por um açude caíam resvalando pela cascata em golfadas fartas de agua fresca que me molhavam os tornezelos.Lentamente aproximo-me e reparo num cardume de enormes barbos desafiando o limite da queda de agua, alimentando-se no musgo inclinado como barbas velhas de um eremita dependuradas do velho rio em redemoinhos escuros e profundos.Tento a sorte na corrente , empunhando a velhinha telescópica sem argolas, aumento o comprimento para os 8 mtros e deixo suavemente pousar o leve chumbo fendido na superfície acastanhada, preso a um pequeno anzol iscado com um morcão(asticot) suspenso por uma linha mais fina que os meus cabelos grisalhos. Senti o primeiro peixe cuja inclinação dava a entender que pretendia a morte certa do abismo ao sofrimento atroz das golfadas de ar sem oxigénio que o esperavam na cesta forrada de ervas aromáticas arrancadas ainda plenas de humidade.Neste rio os peixes não eram todos iguais.Alguns de facto preferiam a liberdade imediata ,desferrando-se e caindo com um baque surdo sobre os penedos secos que os esperavam como barqueiros do além esperando os seus últimos passageiros.Outros lutavam desesperadamente pela vida nunca se dando por vencidos.Outros ..a larga maioria, eram conduzidos placidamente contra a corrente não lutando.Os seus olhos lembravam-me os cordeiros do talho do velho Geraldes, enquanto esperavam pela morte amarrados ao estábulo por debaixo do som das facas aguçando e faiscando alimentadas pela roda e canto do velho carrasco….

Fiquei com os maiores exemplares, enxaguei um pano que passei pela nuca e abri uma garrafa de branco gelado pela corrente.Desembrulhei um bom pedaço de pão de casca de trigo rijo onde duas lascas de presunto na sua gordura animal derretiam os sabores da província de onde foram criados os seus animais e sentado sobre o muro do velho moinho, á sombra do sol do estio que chegava, observei a curva do denso matagal que escondia o velho rio.

Vargas, Vitor e Zé Patilhas caminhavam pela outra margem.Era uma margem diferente ,seca , árida onde os coelhos bravos procriavam por debaixo dos tufos de ervas altas e secas delimitados por uma fronteira de seixos que se extendiam pela margem durante largas centenas de metros.A única marca de vida neste deserto de pedras era uma velha arvore seca enfeitada por velhos plásticos de várias cores que decoravam os seus ramos torcidos como um espantalho pelas ultimas cheias.

Um achigã saltou a jusante e uma libelinha entretinha-se num voo suspenso mirando e fixando o olhar de um velho cágado sob um tronco grosso caído na margem.

Despi as roupas e mergulhei nas aguas escuras deste rio profundo.Enchi o peito de ar e procurei o fundo tacteando até o encontrar. De volta á superfície , suspendi o corpo mirando o ângulo de um rasto de um jacto sob o céu abobadado reflectido neste espelho de agua como cartolina fina .O silencio deste rio era o meu silencio da minha vida que tinha passado. E cada curva do seu regaço era afinal o meu caminho até chegar aqui.Não sabia quais os desígnios que naquele fundo do vale onde o rio desaparecia numa zona inacessível a pé nos reservaria.

Limpei os barbos e alguns bordalos que subiam na corrente tentando saltar o açude na sua migração para a desova e voltei para a casa decrépita do monte onde já todos me esperavam..


A torrente

Os aromas desprendidos pelo fresco poejo do rio, desprendiam-se da fervura de uma calda onde borbulhava o nosso peixe do rio. Saciávamos o apetite terminando numa fritada em escabeche ,entrecortado por um portentoso Douro superior, que libertava a alma do seu criador.Deveria ser um bom homem , depositou nele anos a fio talvez, de trabalho e honestidade, apenas pretendendo fazer um bom vinho, e os grandes homens vêem-se pela clareza e simplicidade das suas obras quando partem.
Os dias foram-se passando e as provisões estavam no fim..Desprendidos e despojados de tudo, algo nos fazia permanecer por lá mais tempo. Apenas o n/sustento nutricional provinha das proteínas do peixe e de alguns tubérculos e ervas selvagens .Restavam umas garrafas de gin, e algum dinheiro para o regresso.Libertos estávamos e como bons selvagens este era o n/destino final, ninguém nos procuraria e descobriria neste rio esquecido.
Mas ele observava-nos. Um dia formou-se uma massa compacta de nuvens escuras como breu nos céus a montante e o ribombar dos trovões ecoavam como canhões de uma batalha naval , de uma armada invencível prestes a ir ao fundo.
A torrente furiosa durou dias a fio e o rio deixou de o ser. Trouxe com ele os males do mundo civilizado que escoavam num estrondo ensurdecedor pelo vale e o silencio dos nossos rostos reflectidos no vidral plastificado do velho casebre depressa libertou os nossos fantasmas das trevas que obstinadamente queríamos ocultar.
Vargas empunhou a carabina e apontando ao rio disparou uma sequencia de tiros tentando ferir o rio no seu coração para que a sua morte fosse imediata e fatal.
Todos vós!!!Num estado miserável, dirigia o dedo , alinhando a sua cara febril á torrente e chuva grossa que compacta formava uma lama vermelha que escorria como sangue e abria as nossas feridas cada vez mais. Todos vós.!!!Me abandonaram, quando precisei de alguém.!!!Tu…cabrão!!!(apontando o dedo a Zé Patilhas), ao longo destes anos não me ajudas-te!! Eu??... Alimentar o vicio dos teus charutos Monte Cristo, e das jantaradas faustosas que pagavas aos Srs Ministros por seres o top dos galeristas de arte!!!Seu f..da…p…!! Zé enfiou um soco que não acertou no queixo mas ferindo a orelha de Vargas , rebolaram pelo sangue de barro que escorria vertente abaixo em direcção ao rio.
O dinheiro..onde está?? Louco e violento, Vitor rebuscava e revirava do avesso os sacos-cama , com a garrafa de gin na mão e uma acha ardente na outra.. Ladrões!!!Eu bem reparei que algum de vós foi á cidade alimentar o vosso mal!!! Infames!! Eu… que julguei que era o rio e só… , .nós… a pureza da nossa juventude…Porque mudamos António??Porque… Chorava agarrado a vinte cinco anos de sonhos mudados e duvidas desfeitas. Todos tínhamos mudado de facto, já não éramos o brilho de um rio jovem, apaixonado pela diabrura da sua corrente ,mas um rio maduro e gasto pelo cansaço de anos a fio de desgaste das suas margens. Agora estávamos todos numa luta desigual.ARDE!!!ARDE!!!As chamas envolviam o casebre e os nossos rostos de fúria .
A chuva parou e o telhado de traves secas carcomido pelo tempo e secura ameaçava desabar. Procurei salvar o que restava e a refrega continuou com insultos e acusações de parte a parte e fugi para o rio onde ajoelhado procurei limpar o meu coração das trevas.


Epilogo

O som do velho tractor aproximava-se.Olhei pela ultima vez para o rio.De vermelho sangue escorria retomando as margens habituais. Passados anos lá voltei, desta vez com uma filha pela mão. Agora a herdade estava limpa, do velho casebre apenas restavam as paredes e uma fuligem negra das traves caídas no meio do silvado que no seu interior ali cresceu.. O rio lá estava , agora com gente que lá mergulhava num dia de estio .O velho moinho resplandecente de cal nova albergava uma associação de ambientalistas e escuteiros iam e vinham para o matagal agora limpo e acessível a acampamentos da juventude. Coloquei a minha filha no meu colo e apanhei um bocado de barro seco que se desfez na minha mão. Espalhei-o no ar e o vento de suão o transportou para o rio que me esperava há muito tempo….Pai??? Como…filha diz; que queres..(absorto estava )-Posso ir tomar banho?? –Claro, claro..vamos .Ele espera-nos, há muito tempo.

Zé Patilhas, um dia decidiu que o velho sobreiro de anos na mesma curva da estrada, o abraçasse de vez e o levou ainda jovem de mais . Vargas bateu no fundo, alcoolizado e crivado de dividas , tenta agora recuperar do lodaçal. Vitor , antigo jogador de ragueby, engordou mais de 80 kgs, e tem problemas de saúde e peso. É criador de gado e produtor de vinho. Eu sou aquilo que já me conhecem. Continuo a pescar, a viver e sonhar.Eles também concerteza.


Nota do autor: Todos os nomes foram ficcionados, menos o do rio, porque esse é o mais verdadeiro de todos nós.


Autor - António Simões


Fiquem bem.

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Re: O rio da revolta
« Responder #1 em: 22:04 Terça, 28 de Janeiro de 2014 »
muito bom
gostei da leitura
obrigado  ^-^
 

Offline Braga

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Re: O rio da revolta
« Responder #2 em: 00:01 Quarta, 29 de Janeiro de 2014 »
Boas

Os meus agradecimentos em nome do autor.

Fica bem.

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Re: O rio da revolta
« Responder #3 em: 10:04 Quinta, 30 de Janeiro de 2014 »
Boas,

Bem, que história espetacular!
Muito bom mesmo, parabéns ao autor.

Obrigado Braga, pela partilha. :fixe:
Cumprimentos,
Roberto

...e se tiver que me calhar uma grade...
...que seja de minis Sagres!!!
 

Offline Braga

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Re: O rio da revolta
« Responder #4 em: 13:43 Quinta, 30 de Janeiro de 2014 »
Boas

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Boas,

Bem, que história espetacular!
Muito bom mesmo, parabéns ao autor.

Obrigado Braga, pela partilha. :fixe:

Como já tenho dito a mim não têm de agradecer nada, em nome do autor agradeço mais um vez.

Fica bem.

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