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Autor Tópico: O Estreito  (Lida 549 vezes)

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Offline Braga

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O Estreito
« em: 19:03 Sábado, 18 de Janeiro de 2014 »
Boas.

Mais um texto do António Simões, aqui publicado após a devida autorização.

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O Estreito

Malê Debalê nunca tinha visto o mar. Um dia o vento quente do deserto folheou uma velha revista deixada esquecida pelos últimos turistas alemães na antiga trilha das caravanas dos berberes que por ali outrora passavam. Curvou-se um pouco e com a ponta dos dedos separou os grãos de areia fina e vermelha que sulcavam uma matiz de papel de um azul tão intenso que o nosso jovem balbuciou algumas palavras mágicas segredadas de geração em geração e que traduziam que a partida, o sinal tinha chegado finalmente à sua vida. Nómada, pastor de cabras de pele negra., o seu mar era vermelho cujo espaço físico tinha por limite ao norte a falha de Bandiágara, no Mali, e o sul dos planaltos semi desérticos sempre que chegavam as estações da chuva. Nessa noite o jovem pastor recebeu a bênção dos anciãos da tribo, e partiu com a caravana Berabish atravessando o deserto subsariano da Mauritânia, sobrevivendo ao mar de areia e chegou perto do estreito onde se aglomeravam alguns compatriotas seus que tinham recebido o mesmo sinal. Preparava-se para embarcar numa bateira Marroquina onde depositou os seus últimos recursos para pagar a viagem. Aguardou alguns dias escondidos num buraco escavado no chão, num denso e espinhoso matagal, até que o chamassem para a última viagem e o encontro com o mar...

Nesse mesmo dia, algures do outro lado da província da Andaluzia a pequena nina Maria, esperava com ansiedade os seus primeiros dias de férias na costa dourada. Os ventos fortes quentes e secos do levante e poniente disputam o corredor do estreito lutando entre si pela conquista do espaço que separa o Mediterrâneo e o Atlântico. A pequena nina corria por entre os vinhedos, os campos de girassóis e soja ajudada pelo vento dos vales, sorrindo com o voo das borboletas num dia de verão. Filha única de pais da classe média trabalhadora rural, só via o mar uma vez por ano e nada se comparava aos mergulhos e correrias dos areais duros salpicados por uma água morna trazida pelos ventos de sodueste do outro lado do estreito.

Ajudadas pelas correntes quentes da costa Africana o grande cardume de anchovas gigantes aproxima-se rapidamente da costa nesta altura do ano á caça de cavalas, tainhas, savelhas, sardinhas, lulas e peixes-agulha. A sua voracidade e ferocidade é implacável, cuja proeminente dentadura triangular afiada e forte mandíbula espalham o terror nos cardumes indefesos dos pequenos alevins que se reagrupam numa fuga incessante até que o ultimo banho de sangue e espuma dos restos do frenesim acalmem o insaciável apetite dos grandes corredores de fundo dos oceanos…

Malê correu para a bateira, e apenas vislumbrou uma fina folha negra que abanava o barco cuja mistura de cheiros da gasolina, restos de algas e peixe putrefacto da restinga da praia deserta lhe revolveram o estômago numa enjoativa e tonta existência enfraquecido pela fome e sede…Um rasto fosforescente ilumina a esteira da quilha do barco e na confusão gerada pelo pânico dos passageiros e raivosos e insultuosos berros da tripulação Marroquina, fazem com que o jovem chore e reze aos deuses das estrelas e do deserto que o ajudem a sobreviver …Num estreito, existe a ordem e desordem, o caos e a cumplicidade, o encontro e desencontro de forças que se unem e desunem, e toda esta mistura gera vida e morte …Não deixamos de sentir a influencia nas nossas vidas de um estreito algures por aí…Para Malê, a nina Maria e a grande anchova também…

Esta não era uma anchova comum, tinha-se separado do grupo alguns dias já, vagueava solitariamente pensando porquê que os grandes bancos de sardinha não estavam onde deviam estar. De ano para ano desde os tempos da sua divertida infância nos deltas dos rios entre o vai e vem das correntes entre marés, que sabia que com o peso e idade tinha dificuldades em acompanhar o grande grupo na procura de comida que se tornava mais escassa e difícil e colocavam em duvida a sua liderança.Todos a temiam, pelo que não estranharam a sua ausência e separação. Sabiam que havia de voltar e trazer boas novas da existência de comedia algures por aí….

Malê tinha passado a primeira prova. Desembarcou numa confusão generalizada e correu, correu até que as forças lhe faltassem como a gazela que desiste de correr porque se esgota, indefesa ás garras da veloz chita. Agora estava por sua conta e risco, escondendo-se num aqueduto de águas pluviais das torrentes furiosas do Inverno que desaguam no mar, adormeceu, tremendo de frio, assustado pelos sons e cheiros do novo mundo, embalado pelo vento frio que não parava de soprar. Não...não sonhou com os leões de África, nem sentiu as primeiras bátegas de agua fumegantes da planície seca e verde se transforma, ao som do velho búfalo que se esfrega feliz na lama vermelha da charca que encheu…O preço da liberdade era superior ao sonho de uma África que não era sua há muitos, muitos anos.

As massas de água do Estreito convergem agora numa corrente que alisa o mar ao longo da costa. O vento amainou e deu lugar á quietude do estio que se prolonga pelas noites cálidas e suaves de uma noite de verão que abre as janelas de par em par á madrugada que cedo chega e acorda o mundo das aves marinhas que num voo picado cercam o cardume de prata, em saltos desordenados, reagrupando-se, surgindo á superfície do mar de um amanhecer espelhado em tons que fecundam o ar e o céu tão fortes que cegam o mais destemido pintor de aguarelas que não receia pela loucura que isso lhe pode provocar pelo momento que não conseguiu recriar… Dois pescadores de douradas ensonados decidem partir e agora as hordas de banhistas chegam cedo para ocupar os lugares mais frescos da beira-mar onde a areia molhada da maré da noite reservou o seu lugar. A grande anchova jamais arriscou assim. Depois de anos de experiência de batalhas ganhas em lutas desportivas contra pescadores que a perseguiam, ferida, estropiada, por arpões que raspavam a sua pele verde-azulado dos lombos, asfixiada por redes invisíveis aceitou e cicatrizou o seu desígnio, mas a sua liberdade de nadar para além do estreito, para além de qualquer barreira natural ou artificial era superior a qualquer força estranha que a puxasse para fora de água e nunca se tinha abeirado tanto da superfície em tão pouca profundidade. Talvez a razão dessa sua destemida coragem fossem os bancos de alevins detectados na noite anterior e que se tinham refugiado naquela baía tão próximo da areia da praia…

Malê caminhava pelo areal vendendo óculos de sol, e a pequena Maria sorriu ao jovem pastor que cruzou a caminho do seu primeiro banho matinal.

Ninguém estranhou o silencio das gaivotas que voavam em círculos desordenados, o voo para o abismo da frágil cria do pombo das rochas que resvalou para a morte, a sombra que não se movia das esteiras e chapéus de palha, do sol que empalidecia em círculos rosa púrpura, do vento que susteve a sua corrida, do ocaso que surgia do horizonte em nuvens de poeira, porque os sinais da tragédia não são perceptíveis aos seres que caminham de pé, perdidos que foram no momento da decisão crucial entre a renuncia do seu primitivismo arbóreo até á evolução da solução final…

Risos...De um dia de verão…O estreito decidiu, que a encruzilhada de três vidas seria jogado ali, num tabuleiro plano de areia e mar…A grande anchova imprimiu velocidade á sua massa corporal, reparou na agitação na água, pancadas de pequenas mãos e pés, frenesim, espuma e sons. Aumentou a velocidade ainda mais e preparou o ataque final…A grande boca de este fantástico predador de quase 23 kgs, denunciou uma fiada de dentes aguçados preparados para rasgar qualquer tipo de carne, flanqueou o seu ventre branco-prateado de reflexos dourados e …Um grito!!!!!!!!!! Tão profundo, que dilacerou o coração dos crentes e não crentes e arrepiou a pele dos mais destemidos e paralisou por milésimas que pareciam horas o tempo daquele momento que por ali passava.Sangue, sangue que tingiu o mar em golfadas e maior agitação entre os que fugiam e aqueles que não acreditavam que alguma vez a realidade fosse ultrapassada pela ficção. Tubaron!!Tubaron!!Gritaria , confusão , fuga ,medo, espanto, paralisia emocional.. A pequena Nina Maria, debatia-se sangrando abundantemente de um golpe profundo do antebraço esquerdo e a grande anchova preparou o segundo ataque excitada pelo sangue, inusual de aroma, mas doce e denso…O segundo golpe esquartejou o joelho esquerdo e Maria deixou de lutar…A grande anchova deu a volta e preparou o ataque final…

Um fio fino de suor escorreu pela textura da pele negra da face de Malê… Arqueou o longo corpo, fino e magro, deixando cair os óculos de sol, que balouçavam entre a espuma e o sangue da restinga da praia. Os seus lábios esmoreceram, rígidos, e adquiriram uma tonalidade cinza prateada e os seus olhos raiaram de vermelho enquanto duas veias das têmporas dilatavam num fio de água cada vez mais grosso e gorduroso.
Para ele o estreito apenas lhe deixava duas únicas soluções. A fuga e a morte da pequena criança, ou o repatriamento de um imigrante Maliano sem papeis, ilegal….

E os sons de África, voltaram-se a ouvir, e o jovem que aprendeu a observar os leões que não admirava por serem tão violentos na caça das suas presas, decidiu o destino não temendo qualquer criatura inferior á brutalidade de simba.

Ágil como uma gazela-de-thomson, irrompeu numa fúria ancestral, ecoando palavras indecifráveis, expelindo os espíritos maus numa gritaria infernal, que a grande anchova recuou perante tamanha figura de um predador desconhecido e rumou apara o mar alto ao encontro final com o seu grupo.

Malê recolheu Maria inconsciente nos seus braços, esvaindo-se em sangue e rapidamente a entregou ás autoridades e Guarda civil que o esperavam, no meio de palmas e emoção das gentes de verão…
O cardume esperava-a há alguns dias esfomeado, dando voltas e voltas de descontentamento á sua volta, logo que soube da sua presença.

Esta era a ultima viagem da grande anchova cansada de lutar. Aflorou á superfície, adornou o longo dorso e pelo grande olho orbital mirou o céu e sol pela ultima vez…De reflexos dourados parou de nadar e lentamente afundou em círculos menos pronunciados vendo pela ultima vez os raios de luz que trespassavam o imenso azul em direcções alinhadas indicando o caminho final… Julgou que ouvia vozes e coros de anjos vindos do fundo abissal quando sentiu o primeiro ataque do bando….

Primeiro foram os mais velhos, que lhe esventraram o fígado, baço e intestino, procurando a bexiga-natatória para que perdesse o equilíbrio e não se pudesse defender. Mas a grande anchova não se defendeu, apenas desejava que tudo terminasse depressa e num último relance enquanto os mais jovens se entretinham com o repasto final, soube qual seria o novo líder do grupo, quando alguém lhe rasgou o coração. Num pasmo final verificou que tinha sido a escolhida, a sua fiel aprendiz, aquela a quem ela tinha mais protegido e ensinado a caçar num mundo cada vez mais hostil e competitivo onde apenas sobrevivem os mais fortes e saudáveis pela procura de alimento cada vez mais escasso… Depois disso nada restou, a cabeça cinzenta baça, mortiça acelerou em espiral para as profundezas e foi levada pelas correntes do estreito onde um tubarão-martelo paciente esperava os restos do caos e desordem dos últimos dias….

Notas do autor:

Estes acontecimentos verídicos tiveram lugar no verão de Julho 2006 na costa sul Espanhola e emocionaram os média e as audiências porque teve um final feliz ao género das melhores novelas.

Agora revejo as imagens, Malê, numa cara de onde sobressai o branco do sorriso dos seus dentes, afaga a mão da menina de 7 anos, na cama de um hospital.

Os pais, esses, e as autoridades, tudo prometeram para a legalização do jovem, pelo que o seu sonho não acaba aqui.

Entre a anchova e Malê, apenas existe uma coincidência, que é a da própria vida, ambos procuravam sobreviver, alimentando-se…

Malê Debalê, é o nome escolhido pelo autor para o jovem, porque quer dizer na língua Mali, a revolta do escravo Malês (Mali), em 1835 em São Salvador da Baía…

Para a menina escolhi o nome de Maria porque todas as crianças são a LUZ da nossa vida.

As anchovas por vezes entre si praticam actos de canibalismo.

Os coros de anjos ouvidos pela anchova foram seleccionados pelo autor da obra musical de Sir John Tavener do tema “ Song for Athene” que podem ouvir no Youtube.

No principio era o mar, apenas e só…

Um bom fim-de-semana para todos

Autor - António Simões

Fiquem bem.

Braga
Comunguem deste ideal e divirtam-se neste Pesqueiro.
F. Braga
 

Offline De La Hoya

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Re: O Estreito
« Responder #1 em: 17:12 Segunda, 20 de Janeiro de 2014 »
 :fixe: :fixe: :fixe: muito bom !!
“Deus ao mar o perigo e o abismo deu,mas nele é que espelhou o céu” - (Fernando Pessoa)
 

 

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