Recentemente, fui à pesca com dois companheiros. A meio da semana tinha-os advertido para a possibilidade do mar não estar em condições, devido às informações recolhidas nos sites da meteorologia e do windguru.
- Vamos e logo se vê. Às vezes as previsões não se concretizam - Disse o João, um optimista. – Vamos, nem que seja só para ver o mar. – Disse o António, um determinado.
As previsões concretizaram-se. Ainda armámos o material, engodámos e fizemos uns lançamentos. Mas qual quê!, o enchio era enorme. Eu fui o primeiro a encostar a cana. Como os meus colegas insistissem, decidi dormitar um pouco até que eles admitissem o inevitável.
Uma vez nas asas de Morfeu, subi, literalmente, aos céus.
Achei-me na presença de um anjo que, a meu pedido, me conduziu, com solenidade, até aos aposentos da segunda figura da Santíssima Trindade. O Pai estava muito ocupado, pelo que seria recebido pelo Filho, Jesus Cristo, ele próprio.
- Então, irmão, que desejas?
- Eu quero reencarnar, Senhor. Quero voltar à Terra para ser presidente de Câmara.
Cristo trocou um olhar com S. Pedro, também presente, na qualidade de secretário do filho de Deus.
- Presidente de Câmara… Hum… E para quê? Não te chega regressar para ires à pesca, que era o que te dava mais gozo fazer enquanto por lá andavas?
-Tenho um objectivo específico, Senhor. Um desejo que gostaria de concretizar.
- Ah sim? E qual é?
- É aproveitar o meu poder e influência, enquanto autarca, para fazer uma estátua, ou melhor dizendo, um conjunto escultórico.
- E pode saber-se a quê?
- Às boas pessoas.
- Às boas pessoas!?... O quê, mais santos?...
- Não senhor, não é propriamente a santos. É para homenagear as pessoas vulgares, os meros pecadores que são boas pessoas.
- Bom… As estátuas normalmente representam pessoas que se distinguiram por alguma coisa. Vultos da medicina, da política, da religião, da ciência, da literatura, até do desporto. Agora pessoas comuns…
- Pois aí é que está. As boas pessoas, hoje, estão tão desvalorizadas que penso que devem ser homenageadas.
- Faz sentido. Mas quem é que vais homenagear enquanto boa pessoa. A coisa é complicada...
- Está tudo previsto, Senhor. Será um conjunto escultórico a celebrar as boas pessoas, em geral. Uma espécie de monumento ao soldado desconhecido. Só que destinado às boas pessoas.
- Não está mal pensado. E, já agora, de onde te veio essa ideia?
- Foi de uma entrevista publicada no Diário de Notícias. Foram falar com o primeiro treinador do Cristiano Ronaldo. E ele referiu o acompanhamento que o pai dava ao rapaz, quando ele jogava nas equipas de miúdos do Andorinha e do Nacional. A entrevista referia que ele não pressionava o filho, deixava-o ser ele próprio. Que tinha uma atitude inteligente quanto à evolução do petiz, ao contrário de muitos outros pais . E terminava com o treinador a dizer que Dinis Aveiro, o pai do craque, “era uma boa pessoa”.
- …
- Creio nunca ter visto impressa num jornal uma declaração destas. Um ser humano vulgar ser referido como “uma boa pessoa”. Mais!... Creio que se pedisse a um político, a um jovem universitário, a um empreendedor, a um administrativo ou a um operário para classificarem o Sr. Dinis, em privado, ouviria coisas como: “alcoólico”, “falhado”, “zé-ninguém”, “pobre diabo”... E por aí fora.
- …
- E, no entanto, e aqui é que está a questão, ele até podia ter sido isso tudo, mas, para além disso, como o treinador frisou, era uma boa pessoa. E quanto a mim, isso sobrepõe-se a tudo. Isso conta mais que o resto. Ou melhor, isso é o que verdadeiramente conta.
- …
- O resto é obra da crueldade, da leviandade e da mesquinhez humana, fruto dos tempos que vivemos. Um tempo em que as pessoas são julgadas pelo que têm ou pelo que alcançam, não importa como. E não pelo que são. Ou seja, são avaliadas pela rama. Sem se descortinar aquilo que é central e importante.
Cristo trocou um olhar demorado com o S. Pedro. Tamborilou na secretária com os dedos. Depois olhou para mim, pensativamente. Voltou a fixar o santo. E disse, estendendo um braço e o dedo indicador:
- Pedro, siga p’ra bingo.
E acrescentou:
- Manda lá este bem intencionado à Terra. E ajuda-o a conquistar a câmara municipal que ele quiser, lá no pais dele.
Agradeci e despedi-me, enquanto os dois comentavam a paixão do grande Cristiano pela pesca. Afastei-me muito devagarinho, para continuar a aperceber-me do diálogo entre eles e, às tantas, o Filho de Deus disse:
- Pedro organiza lá as coisas de molde a que não suceda a este lunático o que me aconteceu a mim há dois mil anos... E já agora, quem achas que é melhor jogador, o Ronaldo ou o Messi?
