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Autor Tópico: O pescador acidental  (Lida 1034 vezes)

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Offline Braga

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O pescador acidental
« em: 23:20 Sexta, 03 de Janeiro de 2014 »
Boas

Após a devida autorização do autor, António Simões, aqui fica este tópico copiado do Sítio.

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O pescador acidental

O Pescador Acidental
O imenso areal a descoberto pela última hora da vazante revelava uma única certeza. As minhas botas que se afundavam superficialmente enquanto a areia fina engrossava e o tapete se tornava duro como uma estrada de alcatrão negra e sem fundo á medida que avançava em direcção ao mar que lá ao longe servia de fronteira á desolação daquele lugar. Apenas sombras e silêncios daquelas horas desoladas de vida onde até os caranguejos verdes de casca dura evitavam aquele lugar porque já nada restava para se poderem alimentar. Esta era a certeza daquele lugar. Um deserto sem vida cujos sedimentos formavam uma capa lisa, acinzentada, rodeada por finos rebordos amarelos de espuma que ao longe a maré vazia trazia de quando em vez antes que o período lunar terminasse a ronda daquele lugarejo abandonado e inóspito para a vida marinha e rejeitado por todos aqueles que nele sedimentaram a culpa e inocência das suas vidas passadas…
Não estava só. Observei o homem que coxeava ligeiramente do lado esquerdo da bota que fendia a areia ainda húmida, formando pequenas estrias em desenhos geométricos perfeitos em compasso alinhado ao longo do areal. Via-o nitidamente sentado sempre no mesmo lugar. Uma pequena ilha, da forma de um cogumelo, ou anémona, rodeada de altas laminárias pendendo como tentáculos de um polvo gigante adormecido. Estava de costas voltada ao mar, porque o pescador de robalos, acendia agora um cigarro cuja pequena incandescência que fendia os seus lábios, revelava a sua posição. Este era o seu lugar, o seu mundo onde colocava a cana e as amostras cuidadosamente sobre o manto de algas e ali ficava adormecido na contemplação da sua vida passada e presente. A pesca era o pretexto dos seus passeios nocturnos e os peixes e crustáceos das pequenas poças circundantes se existissem ainda, estavam habituados á sua presença. Atravessei o deserto na sua direcção. De facto a pesca era o pretexto de ambos. Uma cana e um par de botas não podiam levantar a mínima suspeita porque ambos estes pescadores de robalos se refugiavam naquele lugar da baixa-mar. Alguns botes alumiavam a ténue sombra da linha de água e estas noites abafadas do estio prolongado, chocavam com o fresco da humidade que pingava das rochas e saliências e feriam como esferas de chumbo a estagnação das poças do mar em silencio. Coloquei a minha cana ao lado da dele, retirei o colete das amostras e bebi um gole de agua fresca, enquanto o nosso homem de costas voltadas para o mar, sorvia o seu cigarro, em longas puxadas de aspiração e contemplativo olhava o céu com algumas estrelas, porque viajava com elas, agora e estava possivelmente do outro lado do mundo aonde tinha estado também.
Quer agua fresca Sr. Robert? A noite vai quente e só na viragem da maré é que teremos a primeira brisa fresca vinda do norte antes do amanhecer..; “ Obrigado António, obrigado, mas não tenho sede, apenas estou bem, por aqui. - Já fizestes alguns lançamentos?? << Ou também já não acreditas?’>> Fez-se uma pausa, e o pescador de robalos colocou as mãos cruzadas por debaixo da nuca sobre o manto das algas frescas e estendido deixou de fumar e deixou-se estar calado como sempre o foi desde que aquilo tudo aconteceu… Ainda se lembrava dela concerteza, era uma senhora muito bonita ,pequenas sardas numa face rosada , limpa e clara , própria de gente do Norte, usava uns óculos escuros e lenço cor de rosa sobre a cabeça que se fechava delicadamente com um nó por debaixo do frágil pescoço, protegendo-a do sol inclemente de um dia de verão.
Os anos tinham passado e Mr. Robert, á mesma hora, na mesma data, no mesmo local, ali ficava contemplativo olhando o horizonte, esperando o regresso dela, que o mar lhe depositasse aquilo que de mais de querido lhe tirou….
-Se ainda acredito…!?? (Robert, sempre me tentava apanhar nas malhas da sua descrença..) - O sentimento de perca é atroz; penso que perdi algo também, todos nós já perdemos, não acha, que perder é ganhar ou a indiferença da perca é comum e torna-nos insensíveis perante o sofrimento dos outros, Mr. Robert? Não tenho as suas capacidades filosóficas e profundas razões para tentar compreender….;- És agnóstico, António??Se.. . Sou…“”|Sim, acredito que sim, mas e o dom, Mr. Robert, ? Não é uma dávida de Deus?
- Não, António, o dom nasce, é cognitivo, o da sensibilidade e criatividade, o resto é trabalho..( O pescador de robalos era um famoso psicanalista reformado pelas melhores Universidades do Mundo)..apenas trabalho. Achas que és melhor do que os outros, quando pescavas robalos?? Não..trabalhaste muito , arduamente , para aprenderes, eu..continuo a aprender…contigo!!! Sabes que sou um pescador acidental desde que te conheci, ..Lembras-te, daquele dia, no dia comemorativo, dela.. quando corricavas ao pôr-do-sol perto de mim??- Sim , lembro-me perfeitamente, era muito bonita a sua esposa, lamento tanto, apenas pode recuperar o seu lenço.. , cor de rosa…
O silêncio de ambos era o amor da vida e das vidas que recuperávamos sempre que o pequeno ilhéu se formava nos dias de verão. Os robalos e a pesca eram o pretexto para as nossas conversas sobre Deus, o mundo, as feridas, a dor, o sentimento de perca e.quando me sentia só percorria o areal inóspito á procura de Mr. Robert e do seu imenso mar interior que brotava das suas palavras enormes do tamanho do mundo que procuro entender…
A brisa levantou-se e a maré interrompeu o nosso monólogo interior. Um pio desconcertado dos maçaricos reais e o voo das primeiras gaivotas em direcção ao mar que rumavam ao som das traineiras que regressavam da faina, acordou-nos, fazendo com que a vida retornasse ao seu ritmo normal. Acidental foi o nosso encontro e na partida, perante o mar deserto que enchia o areal, Robert tinha dificuldade pela idade e pelo ligeiro coxear em sair depressa do lugar. Segurei-lhe o braço e deslizei pelas pequenas ondas que traziam o fresco da madrugada ajudando-o a sair do deserto de areia traiçoeiro, até que me atrevi a fazer-lhe a ultima pergunta…
- Essa ferida na perna..?’ Alguma sequela de acidente ou.. Arfando um pouco, encharcou um lenço com agua fresca e enrolou-o no pescoço , alisando os seus cabelos longos e brancos sob a nuca , dando-lhe um ar de Sir , de outros mundos que não os nossos, onde se caçavam tigres de Bengala em cima de elefantes e era natural e snob o mundo ser assim…Há ..!! Isto..!!! Sorriu ,nas poucas vezes que o vi , desenhar algo , ou um esboço de um sorriso na sua face magra de onde emanavam uns olhos azuis profundos como a cor do mar que enchia o nosso horizonte da manha.Isto..!!Um estúpido acidente de bicicleta em Goa.. Numa curva apertada , choquei de bicicleta contra o único automóvel existente por ali….Acidental de facto Mr. Robert.

Até um dia desses por aí.

António Simões

Fiquem bem.

Braga
Comunguem deste ideal e divirtam-se neste Pesqueiro.
F. Braga
 

Offline Nelson Peres

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Re: O pescador acidental
« Responder #1 em: 20:48 Sábado, 04 de Janeiro de 2014 »
Que momento literário brilhante. Parabéns ao autor
Nelson Peres
 

Offline De La Hoya

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Re: O pescador acidental
« Responder #2 em: 11:17 Terça, 07 de Janeiro de 2014 »
 :aplau: :aplau: obrigado pela partilha Braga.
“Deus ao mar o perigo e o abismo deu,mas nele é que espelhou o céu” - (Fernando Pessoa)
 

 

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