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Autor Tópico: Aos Velhos  (Lida 1122 vezes)

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Offline dpeneireiro

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Aos Velhos
« em: 18:14 Sexta, 27 de Dezembro de 2013 »
Não é importante, mas resolvi portar do "Sitio do Pescador" por considerar ser uma homenagem merecida aos nossos "Velhos".
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Será vivo ainda? Terá já partido?

Onde quer que esteja amigo Lobão, se é que me permite tratá-lo assim, um grande bem-haja.

Então assim foi, sem acrescentar nada mais à narração do que o estritamente verdade apesar de por vezes, e derivado ao tempo passado, porque com o tempo certos acontecimentos ganham ares maiores, as verdades estejam um pouco para lá de exacerbadas, mas faz isso que a história ganhe valor sem perder no entanto a objectividade:

Num desses solarengos domingos de princípios de Junho, após almoçar e sem outra coisa que fazer participei à minha, na altura namorada hoje esposa, que seria agradável ir à praia antes da hora prevista para, como digo eu, afogar minhocas.

Após sua anuência (sim porque ela é quem manda nas férias) tratei de juntar o material necessário à prática do desporto inscrito e, após alguns minutos já tinha reunido o indispensável. Uma cana, um carreto, algumas chumbadas de 80gr, outras de 120gr, os anzolitos nº2 e 4… Só faltava mesmo o isco.

Sendo difícil encontrar o isco de minha preferência ao Domingo pois que, as lojas estão merecidamente fechadas e a tiagem não é coisa que se apanhe por ai aos caídos, como diz o povo “do pé para a mão”, sem algum esforço e preparação prévia, propuz-me algumas alternativas:

“ Sardinha, sim sardinha é uma boa opção. Camarão??? Também, sargos e robalos pegam bem nele. Mexilhão hummmm, não sei, é melhor não. Bom, o melhor é mesmo o Camarãozito, está decidido.”

Tudo arrumado, tudo tratado, vamos então de fugida à venda adquirir algumas unidades desse isco congelado, que satisfaça o propósito.

Azar… Azar… Nesse mercado à beira mar, nem vestígios de camarão, nem sardinha, nem nada digno a chamar-se petisco para peixe vivo.

Opção 1: Ir a outra venda procurar agrado. Ahhh mas o tempo urge, que a alma está já irrequieta. A miragem de mar, o cheiro de maresia que me entope as narinas e toda a espectativa já criada me afasta desta ideia.

Opção 2: Comprar o que houver. A mais a mais nem com o melhor repasto para peixe me safava de umas valentes “grades” logo, estando já habituado (como aliás continuo se é que vem ao ocaso), a ideia de mais uma tarde sem sequer uma bicadita era perfeitamente admissível. Até porque, como defendo de argumentos em muitas ocasiões, a pesca não se resume ao simples acto de apanhar peixe mas que dá gosto dá.

Perante esta encruzilhada, e cioso de solucionar da melhor forma o problema surgido, demorei ainda um bom par de segundos a decidir que fazer, enumerando mentalmente vantagens e inconvenientes de cada uma das opções e esgrimindo-os uns contra os outros, como se de um verdadeiro dilema se tratasse e da decisão advinda dependesse algo superior. Até porque afinal vistas bem as coisas, o resultado dessa decisão poderia influenciar em muito o sucesso ou fracasso da missão a que se propõe um pescador aquando do acto piscatório: apanhar peixe que valha.

Mas para todo o saudoso apaixonado o sentimento manda, tolda o raciocínio, sobrepõe o coração à razão, e nem sempre as escolhas são as mais proveitosas. Assim como no amor, desculpado pela imensa paixão às artes da pesca e por forma a abreviar a satisfação de estar junto da água de cana em riste, mirando aquele mar que apenas tem fim porque alguns destemidos Portugueses assim o provaram, optei então por isco o que mais aproximado havia na loja… camarão cozido.

Decidi de mim para comigo mesmo, naquele mercado, que esse dia não seria um dia de pescar peixe mas sim um dia de pesca, daqueles que apenas se partilha com o mar, com a areia, com as rochas… uma certa intimidade, que nos permite reflectir mais desanuviadamente como se os elementos entrassem em nós e nos ajudassem a raciocinar, qual ópio saudável, nos destressando, relaxando...

E assim foi.

Ao chegar ao mar, nessa praia de S. Pedro do Estoril, junto à antiga boca de esgoto chegado ao lado da Bafureira, estendeu-se a minha companheira na toalha à semelhança de alguns outros que aproveitavam do sol quente os raios ainda saudáveis próprios da altura e que no pino do verão tantos estragos fazem a qualquer pele saudável, e eu tratei de emparelhar o melhor que sabia a minha artilharia.

Alguns lançamentos depois e comprovadíssima a nula eficácia que o malogrado camarão cozido prometera na captura de algum exemplar, de qualquer raça que fosse, abeirou-se de nós, e a apenas uma dúzia de passadas de distancia, um Senhor (e sim repito Senhor com letra grande) a quem a idade nos pareceu ser pesada (ou por vicissitudes da vida ou por anos passados não interessa para a história), pois os movimentos que fazia eram lentos e arrastados, movimentos típicos de pessoa já muito vivida e a quem o passar dos anos já nada mais é do que um arredondar de números, no meio de tantos mais um nem faz diferença.

Certo é que o Senhor demorou bem uns valentes quarenta e cinco minutos a montar a aparelhagem toda na cana, uma daquelas canas de duas partes e cabo em cortiça à antiga, e cujas características as melhores canas de hoje tentam imitar; refiro-me evidentemente ao prazer que pescar com uma cana daquelas proporciona, seja porque de facto pescar com elas seja diferente, seja pelo efeito psicológico que uma cana deste tipo induz na mente do pescador moderno, pois pensar que uma cana daquelas, o state of the art de mil novecentos e uns quantos, que já apanhava peixe ainda não era eu nascido… induz em nós qualquer coisa poderosa, qualquer coisa magnânima que apenas se aproxima quando pescamos com a melhor cana do mundo e cuja qual sabemos nunca ter possibilidade de adquirir, trata-se aqui de pescar com uma relíquia.

Mas bem, não nos alonguemos em devaneios destes, estava eu a descrever os movimentos lentos e arrastados do Senhor para que percebam bem o enorme esforço que ele fazia só para estar de pé, quanto mais para pescar.

Eu e a minha companheira entreolhamo-nos e sorrimos percebendo telepaticamente o que nos ia na cabeça… não só o ar atabalhoado do homem, mas mais profundo, muito mais profundo, a paixão pela pesca e o amor ao mar que este homem irradiava e que apenas nós, os pescadores conseguimos sentir. Aquela paixão que o fez sair de casa num domingo solarengo e ir-se colocar à beira mar sob uma forte dose de sacrifício, a mesma que a nós nos será exigida ao fazer algo na sua idade. Foi um sorriso não de escárnio nem de zombaria ou gozo mas sim de compaixão e reconhecimento de mim próprio se algum dia, e oxalá, conseguir lá chegar. Aquele sou eu num possível futuro.

Depois de tudo aperaltado e tratado, estralhos montados, com o tamanho pretendido, chumbada no sítio certo, anzol bem iscado de coreana, o Senhor aproximou-se vagaroso da água e eis que faz o primeiro lançamento. Desconjuntado no corpo mas não no acto e na intenção, o lançamento saiu, a meu ver, perfeito.

Não demorou nem 5 minutos. O homem fisgou uma sargueta jeitosa, nem muito grande nem muito pequena, apenas jeitosa.

Com os seus movimentos compassados a tirou da água e, da mesma forma descrita dois parágrafos atrás voltou a iscar e a lançar.

Juro por Deu que não exagero, mas enquanto ele se preparava para lançar eu ia-me aproximando um pouco mais, na certeza de que após algum desses lançamentos eu teria levantá-lo do chão e a apanhar-lhe o material que ele havia jogado no mar sem querer.

Mas não, não demorou nem 5 minutos o homem fisgou uma sargueta jeitosa, nem muito grande nem muito pequena, apenas jeitosa ….

E isto repetiu-se por três vezes porque à quarta não era uma sargueta mas sim uma tainha.

Escusado será de dizer que a minha companhia zombava de mim a rodos, e eu nada podia fazer para remediar o assunto visto que o isco que escolhera na cegueira da situação que descrevi não mo permitia.

Ora, não me contendo mais perante tal humilhação, ainda para mais frente àquela que por força do destino desejo sempre impressionar, aventei para o homem o seguinte dito:
- Ó amigo, assim dá-me cabo da reputação, então eu estou prá aqui à duas horas e nem tenho um pico de registo e você chega aqui à vinte minutos e tira-me esses peixes todos??? Ainda por cima frente à minha mulher quer dizer... assim vou ser anedota durante uns tempos.

Nunca mais me esqueço, durante todos os anos que for vivo, e se os miolos me não pregarem partida o que se passou a seguir e que vos passo a escrito.

O homem fez o gesto com a mão para que me aproximasse.

Assim fiz e, disse-me ele quando me acerquei:

- Mostra lá o que tens ai.

Claro está que me desculpei logo com o isco: porque e tal camarão não havia, só cozido… eu sei que não presta mas… bem essas coisas todas que podeis imaginar, no entanto lá tirei a aparelhagem de dentro de água e mostrei-a ao homem.

Após analisar, com a mestria de quem sabe, o que estava dependurado na minha linha, e sem nada dizer pois era dado a poucas palavras talvez porque o cansassem, talvez porque era de sua natureza, dirigiu-se à sua caixa de material e perante o meu olhar curioso tirou um anzol dos dele, um pedaço de fio que retirou de uma bobina com ar antigo e executou o empate com recurso a uma máquina automática pois, como me confidenciaria mais tarde: - A vista teima em fugir-me.

Ora, feito o empate que estava voltou a mim e disse com ar grave:

- Isto não presta pa nada, tire lá isso tudo. O anzol tem que ter umas farpas para agarrar melhor o peixe, tá a ver aqui atrás.

Referia-se a um anzol com barbelas dos que uso para iscar com minhoca pois seguram melhor o verme. Já quanto ao peixe, tenho dúvidas que as barbelas os ajudem a segurar, mas perante tal simpatia fiz o que me mandou. Tirei o meu estralho e engatei o que ele acabara de fazer enquanto ele foi buscar uma embalagem de coreana nova que me deu apesar de lha ter querido pagar, e pagar-lha-ia no dobro de bom grado se ele mo pedisse mas não aceitou um escudo que fosse.

 Perguntei então o nome ao meu novo mestre, ao que me informou ser sua graça João Lobão.

Feitas as apresentações que estavam e perante a perda de tempo útil de pesca voltei à minha base de lançamento agradecendo-lhe encarecidamente e não sem antes ouvir ainda:

-Agora vai para ali e atira para aquele buraco, tá a ver, aquele redondo mais azulinho ali no meio.

Assim fiz e, fosse pelo estralho novo, ou pelo anzol de barbelas, pelo isco mais apetecível ou simplesmente por puro acaso, certo é que nem passaram dois minutos e já se tinha ferrado um bicho avermelhado no anzol, um daqueles que dizem por dizer ser um peixe “piça” e não sei se será seu nome de verdade ou apenas modo de chamar mas é a única designação que lhe conheço e portanto aqui fica assim registado.

Apesar de o ter atirado à água a minha reputação estava a recuperar novamente alguns dos degraus que tinha descido e apesar der não ser o mais importante, estava a apanhar peixe. Mas acima de tudo e o mais importante, estava com um par que como eu vê na pesca aquilo que os outros, os que não pescam, não sonham nem sequer imaginam.

Ainda falámos algum tempo mais nessa tarde, ora para discutir técnicas ora para comparar peixes pescados, alguns para a água, alguns com dimensão razoável, ora apenas para jogar conversa fora, enfim… mais uma tarde muito bem passada e em boa companhia.

Depois desse dia, fui variadas vezes ao mesmo local mas infelizmente nunca mais vi o Senhor Lobão.

Não sei se é vivo ou se terá já partido, é contudo figura que não esquecerei. Não porque me salvou a fama nem porque me ensinou as coisas que sabia e os segredos que compartilhou, nem tampouco pela simpatia que teve para com a minha pessoa, todas razões já de si só suficientes, mas acima de tudo porque me fez pensar: quando for mais velho gostava de poder ser assim, um pescador. Não desses de profissão ou de artes.. não: Um pescador de alma.
 

Offline Nelson Peres

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Re: Aos Velhos
« Responder #1 em: 19:54 Sexta, 27 de Dezembro de 2013 »
Boa ;)   E é da autoria de quem, já agora ?!!
Nelson Peres
 

Offline dpeneireiro

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Re: Aos Velhos
« Responder #2 em: 09:40 Segunda, 30 de Dezembro de 2013 »
Bom dia,

é de minha própria autoria.

Cumprimentos,
David
 

Offline Beto_Manja

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Re: Aos Velhos
« Responder #3 em: 12:14 Terça, 31 de Dezembro de 2013 »
Boas,

Bonita história e muitissimo bem retratada, parabéns!
Obrigado pela partilha!

Cumprimentos,
Roberto
Cumprimentos,
Roberto

...e se tiver que me calhar uma grade...
...que seja de minis Sagres!!!
 

Offline Cabé

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Re: Aos Velhos
« Responder #4 em: 12:34 Terça, 31 de Dezembro de 2013 »
 8) Muito bem contado amigo!!! É passado, acontece no presente e irá acontecer no futuro. Obrigado pele partilha de sentimentos. Abraço
A Grade aprofunda o conhecimento !!!
 

 

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