Há dois Verões atrás, uns amigos caçadores - e pescadores quando a caça está interdita - convidaram-me para uma pescaria, num local recôndito do Sorraia, perto de um areeiro.
“Dá para pescares à inglesa, como gostas”, dissera-me o Antunes, o organizador da expedição.
Assim era, realmente. Ele, o Matos e o Batista entretiveram-se a apanhar abletes. E eu fiz uma pesca interessante de barbitos, fisgando apenas sementes.
Como os amigos sabem, isto de acompanhar com caçadores acaba sempre num valente pic-nic. Aliás, o Matos já tinha avisado. “Eu levo o paio, o chouriço e o vinho, da colheita do meu pai, lá da zona do Cartaxo”.
A mesa foi farta e o vinho arrancou exclamações de agrado. “Que pomada!...”, disse o Batista. E eu acrescentei: “Isto é pinga da boa...”. O Antunes, condutor da viatura, apenas provou, mas exclamou, também: “Belo carrascão, sim senhor”.
Entretanto, por entre os ditos de uns e de outros, o Antunes, quando topou que o Batista tinha a sua garrafa quase vazia, começou a espicaçar-lhe a veia poética. A qual invariavelmente se manifestava após patuscadas do género, generosamente regadas.
O Batista fez que resistia. Bebeu mais um golo e voltou a depenicar o queijo. Mas perante as nossas insistências, acabou por declarar:
- Bom, então lá vai...
Acto contínuo, saquei do mini gravador que me acompanha sempre, por deformação profissional, e registei o que a seguir transcrevo. Disse o Batista, erguendo-se e modulando a voz para um registo próximo de um Vilarett ou de um Ary:
- Correspondendo aos pedidos insistentes dos meus amigos, vou recitar um tributo ao irresistível néctar:
Adeus carrascão do povo
Bebo desde rapaz como era uso
Hoje sou um velho com memória
e ‘inda que do vinho já pouco abuse
vou-vos aqui contar a sua história
O vinho era bebido em tabernas
escorropichado todo de uma vez
até um homem se aguentar nas pernas
e servido em copos de dois ou três
Jorrava da torneira do tonel
carrascão, com suave melodia
e girava pelas mesas a granel
solene, como em sagrada liturgia
Hoje, Deus meu, triste desgraça
emborca-se de fugida ao balcão
em “penáltis” ou em baças taças
vertido de horríveis caixas de cartão
Vai longe o tango e a coladera
o fado modernizou-se e veio o rock
as vindimas manuais são d’outra era
e as cubas são hoje em aço inox
Das barricas, das pipas, dos lagares
resta agora apenas a ilusão
e nos lugares de venda singulares
não se lobriga sequer um garrafão
O vinho era coisa d’agricultores
que eram ‘inda chamados vinhateiros
hoje foi arrebanhado por doutores
por enólogos tecnocratas e banqueiros
Adeus Torres Vedras, adeus Cartaxo
o grande Camillo Alves ainda ecoa
esse tempo morreu, foi-se abaixo
vencido pelo Esporão e p’la Bacalhoa
Morreu assim o vinho carrascão!...
Os velhos ficam-se agora pelos martinis
a cerveja é a nova rainha do pifão
e a populaça embebeda-se com “minis”
Escusado será dizer que o Batista teve direito a demorada ovação. De pé.