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Autor Tópico: O barco suspenso  (Lida 1308 vezes)

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Offline atsimoes

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O barco suspenso
« em: 18:50 Sexta, 21 de Fevereiro de 2014 »
O BARCO SUSPENSO

 Nas trevas, na charca , alumia o caminho Gervásio, trilho esse, calcorreado por anos a fio de passos de galinhola tímida e receosa que serpenteia pelo caniço da várzea que ondulando ao vento da primavera que chega e enche o ar de pólen e o gri,gri e o ra,ra, numa sinfonia de um verão que está prestes a chegar.Já estamos quase lá, na penumbra vislumbro a quilha, empinada ao vento, em direcção ao mar, que lá longe teima alguma vez em lá chegar…..Gervásio é o capitão deste barco feito jangada de pedra,suspenso num canavial onde um regato corre e se enche de enguias no Inverno e de sapos no Verão.
Capitão? Quando partimos? Como?!!.Hum,.. talvez no próximo ano, ainda não está acabado….talvez…   Faltam as dobradiças, o vidro para a clarabóia, o leme da melhor madeira que há-de vir do Brasil! Ainda não, ainda não….Sentado no rebordo do seu barco suspenso de um canavial, sorria e sabia que Gervásio nunca chegaria ao mar…De pedra, preso ao seu destino, apenas o sonhava comandar um dia. Lá longe o mar bramia numa espuma branca movediça e os olhos de Gervásio já navegavam pela selva das trevas de onde saiu….O barco, esse, era o seu refugio, nada mais lhe dizia ou saía em monossílabos que por vezes não percebia na canícula, enxotando os mosquitos, de chapéu de palha rota na aba, envelhecida pelas noites do sertão. Quando o canavial mais crescia, mais dependurado no deck Gervásio permanecia, perscrutando o horizonte, procurando o imenso azul na ânsia de o ver antes de o dia acabar…
E a ancora, capitão? Falta a ancora…onde está? < < Preso estou, numa condenação perpétua á solidão da minha corrente que me prende todos os dias , até ao ultimo dia da minha partida, menino….>> Uma cotovia se dependurava no cordame do mastro e o pio desalentado da ave na calmaria da noite que chegava, abria de par em par o mundo de Gervásio…Quantas mulheres amou meu capitão, porque está só nas rugas da vida que trilhou, porque não amou??? Pescou nos mares mais gelados do planeta, trilhou a selva mais recôndita na procura da árvore mais sevosa da borracha, almejou o brilho das eternas esmeraldas no barro vermelho da Namíbia, abriu a golpes de catana o mato denso da roça que construiu…Onde está o amor capitão? Aonde.?? Fechava os dedos de raiva para o perceber, sabia que a sua dor era a metamorfose daquele barco transformado em pedra, inamovível, preso ás amarras do passado numa viagem sem volta, sem retorno.
A agua, apenas a agua do mar o acalmava, cego e seco, gotejava, latente, numa doença infernal que lhe consumia febrilmente o coração, enquanto esfregava vezes sem conta o convés de cimento endurecido e liso de anos de esquecimento naquele mar ondulante de caniços ao vento. Subíamos ambos o mastro principal e doidos estávamos porque um dia Gervásio disse-me que o mar tinha chegado, era a hora de partir! Menino, Menino,!! Veja, veja.!!! O mar, o mar! Aonde, Gervásio aonde??? Ali, ali!!! Apontando o dedo ao firmamento, os olhos do capitão, exultavam das orbitas brancas, porque o momento tinha chegado. Finalmente…ilhados, a esperança começava a chegar porque o mar, num dia de marés vivas impressionantes tinha chegado perto do carreiro da estrada, levando as barracas, os toldos e a multidão fugindo naquele mês de Agosto….
Um dia o ribeiro secou, o caniço recuou deixando exposto o dorso do barco agonizando numa vida que se esvaía a cada dia que passava enquanto o musgo secava , infecto e putrefacto o lodo ficava á volta de um barco suspenso agora de vida sem mar para navegar. O meu capitão um dia trouxe um martelo e picou a base da sua sustentabilidade. Por cada pancada, uma lágrima ferida se soltava do rosto daquele homem que era do tamanho do mundo que correu e navegou. A brita caía ao compasso da sua revolta e no final do dia um rombo enorme prostrava Gervásio no solo com as mãos ensanguentadas de incompreensão perante as maquinas que chegavam para acabar de esventrar o resto que ficou…
Acabou de velho mirando um dióspireiro despido de folhas e frutos amarelos sentado no sofá carcomido, ao sol, com uma manta pelos joelhos, adormecendo e levando com ele uma vida que dava um livro cheio de páginas vividas numa maré cheia de lua crescente num mar de um canavial…
Como ele também nós somos barcos suspensos prontos a partir.Um dia mais…
Até sempre capitão.

Nota do autor: Hoje em dia o terreno onde o nosso herói tinha o barco fundeado, é um condomínio de pequenas casas geminadas com vista para o mar.O ribeiro esse um dia decidiu voltar a correr e no carreiro onde estava mesmo o barco perfilhado nada mais se construiu e o canavial voltou a crescer e Gervásio voltou a renascer.


Obrigado pelas v/leituras, já ha muito que não escrevia algo. Todos estes textos estao espalhados pelos links poeirentos do meu velhinho computador.
Ainda bem que ainda se perde algum tempo na leitura , sinal da criatividade , genialidade do ser humano frente á desumanização da globalidade virtula.

Obrigado a todos.
Antonio Simões
 

Offline Ricardo Teixeira

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Re: O barco suspenso
« Responder #1 em: 19:08 Sexta, 21 de Fevereiro de 2014 »
boa leitura
obrigado pela partilha
 

Offline Braga

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Re: O barco suspenso
« Responder #2 em: 16:23 Sábado, 22 de Fevereiro de 2014 »
Boas

António Simões é sempre com prazer que leio estes escritos, agradeço e fico na esperança da continuidade.

Fica bem.

Braga
Comunguem deste ideal e divirtam-se neste Pesqueiro.
F. Braga
 

Offline Nelson Peres

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Re: O barco suspenso
« Responder #3 em: 22:35 Terça, 25 de Fevereiro de 2014 »

Que o seu velhinho computador continue a espalhar esses textos aqui no nosso pesqueiro. Esses link´s poeirentos têm quêm lhes tire o pó. Obrigado pela partilha :fixe:
Nelson Peres
 

Offline De La Hoya

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Re: O barco suspenso
« Responder #4 em: 15:52 Sexta, 07 de Março de 2014 »
mesmo...agradavel leitura , obrigado pela partilha!! :fixe: :fixe:
“Deus ao mar o perigo e o abismo deu,mas nele é que espelhou o céu” - (Fernando Pessoa)
 

Offline Ernesto Lima

Re: O barco suspenso
« Responder #5 em: 18:08 Sexta, 07 de Março de 2014 »
Viva António

Há muito não lia algo teu... ainda bem que aqui vim.

Forte abraço

Ernesto
Quanto mais pesco... mais sinto necessidade de aprender sobre a pesca.
 

Offline Beto_Manja

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Re: O barco suspenso
« Responder #6 em: 19:13 Domingo, 09 de Março de 2014 »
Boas,

Que belo texto, leitura agradável e de qualidade muito superior, a vários auto-intitulados escritores da nossa praça...

Aproveito para agradecer "diretamente" ao autor dos vários textos que tenho lido por aqui, partilhados com a cortesia do amigo Braga, obrigado e mande sempre :fixe:
Cumprimentos,
Roberto

...e se tiver que me calhar uma grade...
...que seja de minis Sagres!!!
 

Offline atsimoes

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Re: O barco suspenso
« Responder #7 em: 21:11 Quarta, 12 de Março de 2014 »
Não está autorizado a ver ligações. Registe-se ou Entre
Viva António

Há muito não lia algo teu... ainda bem que aqui vim.

Forte abraço

Ernesto


Ernesto!!!!

Grande pescador e escritor!! Fantástico!

Como é bom vos rever!!! A vida decorre Amigo, depois da crise de 2008, abarquei um novo projeto dentro da Empresa e não tive tempo para mais nada até agora.

Só percorro a amada Galiza todo o ano e tinha milhentas historias para vos contar, de pescarias, de pensamentos, da minha felicidade em ser um bom selvagem pelos montes, escarpas, falésias, promontórios onde gostaria de ser ave, gaivota, milhafre, para me suster no ar e parar de respirar por momentos, por breves momentos, Amigos....

Os meus agradecimentos a todos vós, em geral a quem respondeu ao meu texto.

Sou tão humilde e pequeno, sou apenas e só um simples pescador , que narra aquilo que vê e sente pela caneta e grandiosidade do criador....


Grande Abraço a todos, sejam muito felizes, vivendo ,amando e pescando!!

Antonio
« Última modificação: 21:22 Quarta, 12 de Março de 2014 por atsimoes »
 

 

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